domingo, 5 de dezembro de 2010

HOMENAGEM: JORGE FRAGOSO (MOÇAMBIQUE/PORTUGAL)*




Foto: Jorge Fragoso (Portugal)





(a fome)

há um hábito de pássaros
a repulsar as linhas dos sentidos
apagam-se no branco fresco da sombra

disseram-me que esquecesse
o roxo dos lábios o gelo da pele
e a luz sólida interior ao vidro

afinal o tempo é tão absoluto
como a fome





Sol



Na contraluz
são os metais colados de gelo
essa cor dos rios nua
finar dos dias quase
claros

os objectos íntimos abandonam-se
só o perfil da luz
silhuetas agudas
uma quietude abrupta
como depois da explosão
a espalhar fogo pelos olhos inteiros

cegos de enxofre
calcinados de magmas a um passo
de incandescer

o som a rastejar os túneis
a chama vem contrária
afoguear a linha da sombra
um muro negro arde no desejo
curva leve da luz

a simbologia dos panos
o desenho revolucionário
da breve claridade
os dias completos de tocha acesa
no centro das mãos
que luz que fogo que branco

o resto
é mesmo sombra

a fotografia inclina-se um pouco
para a esquerda





FUSÃO DE ESPAÇO

Varanda sobre o mar
É delicioso este penetrar o vento
e perder o olhar sobre as águas

Memória de outros frios
Entra-me brusca a montanha
pela janela de par em par
aberta sobre a pele tisnada

A serra intimida
enche de ânsia o peito
recorda o odor de pinho e fogo

Subitamente
os teus dedos de água
unem montanha e mar sobre a carne
e num rio leve e louco me perco
como um desejo

A paisagem abraça-me
e é perfeita



*JORGE FRAGOSO: Nasceu na Beira, Moçambique, 1956). Licenciado em Filosofia. Editor. Membro da Oficina de Poesia – curso livre da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e sub-director da Revista Oficina de Poesia. Investigador associado do CES – Centro de Estudo Sociais, de Coimbra, no Projecto "Novas Poéticas de Resistência: o século XXI em Portugal". Livros publicados: Inima, (poesia), Coimbra, A Mar Arte, 1994; O Tempo e o Tédio, (prosa-poética), Viseu, Palimage, 1998; A Fome da Pele, (poesia), Viseu, Palimage, 2004; Rua do Almada (contos), Coimbra, A Mar Arte, 1995 e Dez Horas de Memória (romance), Viseu, Palimage, 1999, traduzido e publicado em Itália, com o título Dieci Ore, Nápoles, NonSoloParole Edizioni, 2006. Participação poética dispersa em revistas e colectâneas em Portugal, Espanha e Brasil.

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