sábado, 6 de novembro de 2010

ENSAIO: LOUCURA: QUEM PODE SER NORMAL? - VANDA LÚCIA DA COSTA SALLES (BRASIL)



Foto: Vanda Lúcia da Costa Salles (Brasil) e sua pintura, acervo de Argílio (Argentina)




1- LOUCURA: QUEM PODE SER NORMAL?


" Minha alma de sonhar
anda perdida (...)

Passo no mundo,
meu amor,
a ler,
no misterioso livro
do teu ser
a mesma história
tantas vezes lida (...)"

( Florbela Espanca, apud Fagner, 1981)



É sabido que o preconceito, a arrogância e a insensibilidade em aceitar as diferenças são os traços marcantes na história dos povos e dos homens. Haja vista na história da humanidade a indefessa batalha travada pela significação humana, a qual diz respeito a todo percurso de vida do ser humano e da brutalidade na interdição de sua verdade e/ou de uma verdade: a violência na luta pela conquista do espaço e do controle da formação, informação e do conhecimento dos homens. Compreende-se, assim, que " a luta do homem contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento." (KUNDERA, 1993, p.7).
A memória funda o lugar do humano na busca do sentido. Isto posto, pensar em situar " loucura" ou quem pode ser "normal" em sociedade, há que se refletir nas inconvenientes, mas alarmantes, questões agudizadoras do patológico no social:

a) Quem tem autoridade para estabelecer a quem pertence este mundo que todos constroem, na vida e com suas vidas?

b) Que lugar reserva-se ao pobre, ao mendigo, ao analfabeto ( principalmente os acima de 30 anos, problema deixado de lado no país), ao homossexual, ao adolescente, ao negro ( de cujas crianças 59% são analfabetas), aos idosos ( que já são 20% da população no Brasil), ao indígena, ao doente, à criança ( que perfazem mais de 18 milhões de vítimas da violência doméstica), à mulher, ao portador especial ( físico ou mental)?

c)Que razão existe para que alguém seja de antemão descartado, isolado, oprimido, negado na potencialidade de sua existência?


Ao procurar compreender as indagações que permeiam a vida e, com certeza, é direito de todos para um perfeito discernimento das idéias, preciso se faz buscar a produção do desejo e de seus simulacros ( engendrados por uma minoria com o objetivo definido de silenciar o discurso de uma maioria. Aquela, portadora dos bens materiais e espirituais; esta, impedida de conquistá-los), até porque remete à dignidade humana e ao sentido que o corpo e a alma possuem na socieade burguesa. Aqueles, construtores e balizadores da evolução desta. Pode-se afirma esta premissa quando lê-se que no entendimento do SABER X PODER " é preciso rever as estratégias de normalização do corpo e da vida que estão bem no centro do projeto político de dominação burguesa." (FOUCAULT, apud CHAVES, s/d, p.57)
Impedir o homem de sentir e de se pensar enquanto corpo e alma para com criatividade construir sua humanidade (condição plena de saúde mental e social) e formular sua ética, orientadora de sua estética, faz parte da estratégia do poder. Assim como a difusão e manutenção de uma ideologia dominante, cooptadora das energias vitais do ser, que ao silenciá-lo em sua linguagem corporal sufoca seu projeto existencial, alienando-o, desviando-o de sua arte real: ser de transformação e transformacional - instaurador da sociedade.
O projeto político de dominação burguesa, cada vez mais, tende a marginalizar o homem de sua linguagem primordial: corpo e alma - definidores de sua leitura e escrita singular, negando-lhe o direito e a liberdade de se apropriar dos conteúdos sociais, de confirmar no cotidiano sua cidadania e conquistar a sua alteridade.
Por mais absurdo que possa parecer, na produção das ideias existem erros difundidos com a intenção de que em essência o indesejável não se faça presente e a cidadania política questionadora do sistema como tal se torne inoperante. Esclarece SANTOS: " a questão do corpo humano não é algo secundário como poderia parecer a uma mentalidade racionalista. O sentido do corpo está relacionado com a liberdade, com a consciência, com a atitude do homem em geral." ( SANTOS, 1974, p.13).
A norma justifica, assim, a escravidão na natureza humana. Logo, faz necessário interditá-lo de dar e ser sentido em seu nonsense. De obrar e falar, através de Eros dos outros e aos outros homens que não existe " loucura" e nem " normalidade" absolutas. Existem ideias, erros epistemológicos e estereótipos culturais porque criados em socieade impedem o homem natural de se reconhecer no social, despoetizado que estar pela homogeneidade e injustiça do poder e saberes exacerbados. Totalitários.
Essa atitude cultural anti-natural que se quer "divina" preocupa-se em "justificar" um sistema que se recusa a reconhecer sua decadência social (DEMO, 1998, p.25) porque excludente em sua base. Esta noção se quer esqucida, não só fora da memória quanto da totalização do ser, como afirma VIDOR: " o ser natural não se identifica oa social porque o segundo deriva do primeiro" (VIDOR, 1996, P.68), e justifica:

" A mente usa o corpo todo para se expor e, portanto, toda e qualquer parte
sua é sede de uma ação de inteligência; mas, enquanto a consciência não
refletir a mensagem proposta pela ação inteligente da mente, ela impede o
corpo de evidenciar a sabedoria da mente e, consequentemente, o altera.
A alteração biológica tem origem num erro epistemológico."

(op. cit. p.p. 68, 69)


Buscar a saúde mental e social será fazer falar o corpo reprimido, despertar a sua espontaneidade, o seu fulgor. A sabedoria desse corpo, a essência do mais humano no ser que será a politização da ideias pela clarificação de sua palavra, esse toque magistral, misterioso e profundo. Fulcro de sua linguagem plena, desmitificada. Poetizada na ação da mudança da imagétic corporal, do social. Portanto, é preciso sair do lugar-comum, reconstruir o conhecimento deixando fluir o saber do universo da imagética mental do profundo de si. Fugir da retórica insignificante e tendenciosa para compreensão do modelo social de saúde hoje, o qual, colocando em jogo a inteligência e a curiosidade, baniu do estatudo da norma a imaginação, o sonho, a alegria, a beleza natural e singular como forma de descaracterização da vida, da diferença e da crítica, principalmente, a social.
Polêmicas são as ideias, ou estariam sendo, propositalmente, "enloquecidas", para que o humano do homem não se reconheça em sua especificidade unificadora - ser de linguagem e na linguagem - porque de diálogo, de relações e revelação. Mas também com fulcro nas relações significativas e pluralistas. (...)


( In: DIVERSIDADES E LOUCURAS EM OBRAS DE ARTE: Um Estudo Em ARTETERAPIA. Vanda Lúcia da Costa Salles,RJ: Agora da Ilha, 2002, p.p. 11,12,13,14 e 15 )

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