sexta-feira, 29 de outubro de 2010

HOMENAGEM: JOSÉ GERALDO NERES (BRASIL)*



Foto: José Geraldo Neres




O SOL NÃO ME ESPERA[6]



um cão ilumina a si mesmo
dentro da pele da morte
sua boca um rio de lençóis

o mistério desliza pela noite
um cego vigia a porta

a quem ele estende a mão?
como ajudá-lo a atravessar a porta?

nasce com um naufrágio atrás das orelhas
e seus olhos não possuem memória

não há claridade no caminho
apenas o cão com seus olhos de barro


EM NOME DA SEDE[4]


sombras se agitam
a uivar para as nuvens de martelos assustados

olhos selvagens na floresta de sobrancelhas
se agarram ao suicídio das casas
na tentativa de descobrir o segredo da terra

elas
reclamam que não conseguem sonhar direito
se encolhem de frio
querem comprar mais uma alma
mas se sentem arrastadas pelo espelho
uma paisagem de olhar amassado de sono
na sensação de serem devoradas pela areia
de serem um rio afogado


sussurram
somos
o castigo na espera de passar pelas sete portas
o ventre despovoado de raízes
a noite fechada dentro do homem
a estrada no limite do corpo
a segunda língua de tudo que não existe
a palavra que ninguém responde
a insônia das águas em sangue doente
o passo lento das casas e suas pálpebras pesadas


DESERTO DOS PÁSSAROS ÚMIDOS[3]



I



o tempo
navega
além do rio
o tempo
prisioneiro
o tempo
além da vontade da água

porta parada

homem oco e seus relógios
nome deitado cego
escondido nas raízes da água
enterra sua sombra
nos galhos de um arco-íris

parado na porta
o tempo



II



voz no cortejo de punhais
sol afogado no peso e na dor dos pássaros
seu olho
no sangue do rio
e nas suas margens com seios de prata
língua de serpente no voo da lua
e na espera d’água





III



a dança conta a vida
como se chovessem noites

o ritmo desperta a água
nos olhos navalhas

o movimento enroscado no deserto dos pássaros úmidos

deus

– em seus pesadelos
penetrava nas almas e arrancava os olhos
a poesia não cicatrizava –

acorda
na última fila
ele
diante do espelho

a linguagem da queda





IV



sentir o silêncio da nudez
palavra aquática
nos olhos
o dilúvio de arco-íris
corpos líquidos
deslizam à deriva
águas sem margens
ondas se enterram
no lírico punhal
das pequenas mortes





V



as pálpebras escavam
um círculo
agarram o mar
metade luz
metade grande selva
no horizonte
constelações de peixes rápidos
no altar de estrelas
um grito invisível
ponteiros sem lágrimas
o demônio na sombra de um deus
barcos no pulso das nascentes
dois rios inimigos
lábios em forma de promessas





VI



as árvores cantam
levam meu corpo
suas raízes criaram asas
movimento de mulher de país infinito
meus olhos no aprendizado das horas
imagino um lago
espero um navio líquido
um peixe no céu
naufrágio alado
ave trançada em algas
mostra sua pele
um rio sem margens
ensina à nuvem
ser uma manada de palavras
uma metáfora suspensa
sentado no seu colo
a noite faz morrer uma estrela
o ventre na descoberta da água
exibe-se
atravessa o silêncio
os dias cobrem os ponteiros
rasgam o vento
e o que não existe
sangra o fogo
no seu dorso
água violenta
no rio
as árvores cantam














*JOSÉ GERALDO NERES, (nasceu em Garça, SP, em 1966). Poeta, roteirista, dramaturgo (com formação em oficinas e cursos de criação textual) e produtor cultural. Graduado em Letras pela Universidade Federal do Maranhão e Pós-graduado em Literatura Brasileira pela PUC-MG. Publicou o livro de poesia Olhos de barro, (Coleção Orpheu, Multifoco Editora) que recebeu menção especial na 3a edição do Prêmio Governo de Minas Gerais de Literatura (2010); e Outros Silêncios, Prêmio ProAC da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo 2008, (Escrituras Editora, 2009) realizado através do programa “Bolsa para autores com obra em fase de conclusão” da Fundação Biblioteca Nacional em 2007/2008; e Pássaros de papel (Dulcinéia Catadora, edição artesanal, SP, 2007). É co-fundador do Palavreiros. Integrante do Conselho Gestor & Editorial do Ponto de Cultura Laboratório de Poéticas (Programa Cultura Viva, do MinC). Gestor Cultural. Curador da Sala Permanente de Vídeo/Doc. da 8ª Bienal Internacional do Livro do Ceará (2008). Jurado da etapa inicial do Prêmio Portugal Telecom de Literatura (2009). Ministra oficinas literárias, com ênfase em criação literária e estímulo à leitura. Atual curador do projeto Quinta poética encontros multilinguagens promovidos pela Escrituras Editora e Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos.

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