domingo, 27 de fevereiro de 2011

HOMENAGEM: A NOITE EM QUE OS HOTÉIS ESTAVAM CHEIOS - MOACYR SCLIAR (BRASIL)*



Foto: Bandeira do Brasil




Foto: Moacyr Scliar (Brasil)





A NOITE EM QUE OS HOTÉIS ESTAVAM CHEIOS




MOACYR SCLIAR (BRASIL)





O casal chegou à cidade tarde da noite. Estavam cansados da viagem; ela, grávida, não se sentia bem. Foram procurar um lugar onde passar a noite. Hotel, hospedaria, qualquer coisa serviria, desde que não fosse muito caro.

Não seria fácil, como eles logo descobriram. No primeiro hotel o gerente, homem de maus modos, foi logo dizendo que não havia lugar. No segundo, o encarregado da portaria olhou com desconfiança o casal e resolveu pedir documentos. O homem disse que não tinha, na pressa da viagem esquecera os documentos.

— E como pretende o senhor conseguir um lugar num hotel, se não tem documentos? — disse o encarregado. — Eu nem sei se o senhor vai pagar a conta ou não!


O viajante não disse nada. Tomou a esposa pelo braço e seguiu adiante. No terceiro hotel também não havia vaga. No quarto — que era mais uma modesta hospedaria — havia, mas o dono desconfiou do casal e resolveu dizer que o estabelecimento estava lotado. Contudo, para não ficar mal, resolveu dar uma desculpa:

— O senhor vê, se o governo nos desses incentivos, como dão para os grandes hotéis, eu já teria feito uma reforma aqui. Poderia até receber delegações estrangeiras. Mas até hoje não consegui nada. Se eu conhecesse alguém influente... O senhor não conhece ninguém nas altas esferas?

O viajante hesitou, depois disse que sim, que talvez conhecesse alguém nas altas esferas.

— Pois então — disse o dono da hospedaria — fale para esse seu conhecido da minha hospedaria. Assim, da próxima vez que o senhor vier, talvez já possa lhe dar um quarto de primeira classe, com banho e tudo.

O viajante agradeceu, lamentando apenas que seu problema fosse mais urgente: precisava de um quarto para aquela noite. Foi adiante.

No hotel seguinte, quase tiveram êxito. O gerente estava esperando um casal de conhecidos artistas, que viajavam incógnitos. Quando os viajantes apareceram, pensou que fossem os hóspedes que aguardava e disse que sim, que o quarto já estava pronto. Ainda fez um elogio.

— O disfarce está muito bom. Que disfarce? Perguntou o viajante. Essas roupas velhas que vocês estão usando, disse o gerente. Isso não é disfarce, disse o homem, são as roupas que nós temos. O gerente aí percebeu o engano:

— Sinto muito — desculpou-se. — Eu pensei que tinha um quarto vago, mas parece que já foi ocupado.

O casal foi adiante. No hotel seguinte, também não havia vaga, e o gerente era metido a engraçado. Ali perto havia uma manjedoura, disse, por que não se hospedavam lá? Não seria muito confortável, mas em compensação não pagariam diária. Para surpresa dele, o viajante achou a idéia boa, e até agradeceu. Saíram.

Não demorou muito, apareceram os três Reis Magos, perguntando por um casal de forasteiros. E foi aí que o gerente começou a achar que talvez tivesse perdido os hóspedes mais importantes já chegados a Belém de Nazaré.

-...-




*MOACYR JAIME SCLIAR: nasceu em Porto Alegre a 23 de março de 1937.
Em 1943, começou seus estudos na Escola de Educação e Cultura, também conhecida como Colégio Ídiche, aonde sua mãe chegou a lecionar. Em 48, transferiu-se para o Colégio Rosário, um ginásio católico.
Em 1955, foi aprovado no vestibular de medicina pela faculdade de medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde se formou em 1962.
Exerceu a profissão junto ao Serviço de Assistência Médica Domiciliar e de Urgência (SAMDU).

Seu primeiro livro publicado foi "Histórias de Médicos em Formação", publicado em 1962, depois desse livro a produção literária de Scliar não parou mais.
É autor de mais de 30 obras entre romances, ensaios, contos e artigos. Tem traduções de seus livros em vários idiomas, entre eles, alemão, francês, espanhol, inglês, italiano, hebraico e sueco.

Em 1989, Moacyr Scliar recebeu, em Cuba, o prêmio internacional Casa de Las Américas pelo livro "A Orelha de Van Gogh".
É colaborador da Folha de S.Paulo desde a década de 70 e assina atualmente uma coluna no caderno Cotidiano.
Moacyr Scliar é hoje um dos escritores mais representativos da literatura brasileira contemporânea. Os temas dominantes de sua obra são a realidade social da classe média urbana no Brasil e o judaísmo. As descrições da classe média feitas por Scliar são, frequentemente, inventadas a partir de um ângulo supra-real.
Entre suas obras mais importantes estão: "A História de um Médico em Formação" (1962); "A Guerra do Bom Fim" (1972); "O Exército de um Homem Só" (1973); "Mês de Cães Danados" (1977); "O Centauro no Jardim" (1980); "A Orelha de Van Gogh" (1988); "Olho Enigmático" (1988) e "A Mulher que Escreveu a Bíblia" (1999).

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