domingo, 7 de agosto de 2011

HOMENAGEM: O FILHO DA SOLITÁRIA- NILTO MACIEL (BRASIL)*



Foto: Bandeira do Brasil



Foto: Nilto Maciel (Brasil)




O FILHO DA SOLITÁRIA



NILTO MACIEL (BRASIL)



Quando ele voltou, isto é, quando o trouxeram de volta, não o reconheci. Talvez eu já estivesse ficando cega, caduca, velha demais, como diziam. Não, meu filho parecia mesmo outro. Certamente haviam passado muitos anos desde sua partida, pois ele também não me reconheceu. E nem ainda me reconhece.
Com as quatro patas assentadas no chão frio, vive mudo pelos cantos. Eu o aconselho a cantar, de vez que não quer falar. E a correr, já que não deseja andar. Porém ele apenas coaxa e pula, de quando em quando. Como se tivesse medo de estar livre.
Resolvo então espantá-lo com a vassoura. Se assim não fizer, a casa pode virar um monturo, cheia de sapos, ratos, bichos de toda espécie. Paro e vejo: ele me olha com resignada profundidade. Depois dá um pulo, outro, mais outro e foge para o quintal. Se me descuido ou quando é noite, está ele novamente no mesmo cantinho, encolhido, os olhos esbugalhados.
No quintal, mete-se na água suja que escorre da lavanderia, na lama formada ao pé do mamoeiro ou no lixo onde se amontoam os restos de comida reservados ao bacorim desaparecido.
Dia desses, a vizinha da direita, ao ouvir aquele remexido na água, pôs a cabeça sobre o muro e perguntou se me haviam devolvido o porco. Enquanto imaginava a resposta, perguntei-lhe se do lado de lá o muro era baixo. Fui buscar um tamborete, porque julguei ter ouvido roncos de porco, explicou-me. A seguir, arregalou os olhos e perguntou: de quem é este sapão? Você está criando ele para engolir cobras? João olhou para a cabeça que falava e deu uns três pulinhos dentro da água. Tive vontade de dizer um desaforo qualquer. Terminei fazendo graça. Eu o queria para apagar brasas. A safada sorriu e disse: deixe de mentira! Ninguém usa mais fogão a lenha nem fogareiro a carvão. E desapareceu. Fiquei apalermada, a olhar para cima do muro. E ainda ouvi a voz risonha e sumida da vizinha gritar: jogue água salgada nas costas dele.
Dias depois, minha vizinha da esquerda veio me perguntar se, na verdade, eu havia resolvido criar batráquios. Ora, que diabo são batráquios? Quando tiver alguma jia grande me avise. Adoro jias.
Hoje me contaram tudo: meu filho esteve numa solitária, acocorado durante não sei quanto tempo.


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NILTO MACIEL: (Baturité, 1945) é um dos fundadores de O Saco. Publicou as seguintes coleções: Itinerário, 1.ª ed. 1974, 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Tempos de Mula Preta, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ; Punhalzinho Cravado de Ódio, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.; As Insolentes Patas do Cão, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Babel, 1997, Editora Códice, Brasília; e Pescoço de Girafa na Poeira, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília. Tem novelas, romances e poemas em livros. Pertenceu ao Grupo Siriará. Editor, desde 1991, em Brasília, da revista Literatura. Em 2003 a transferiu para Fortaleza. Suas narrativas mereceram artigos e ensaios de alguns comentaristas e críticos cearenses, como F. S. Nascimento, Sânzio de Azevedo, Dimas Macedo, Batista de Lima, Francisco Carvalho, Caio Porfírio Carneiro, Carlos Augusto Viana, e também de outros Estados, como Foed Castro Chamma, Tanussi Cardoso, Francisco Miguel de Moura, Ronaldo Cagiano e Astrid Cabral. Tem contos traduzidos para o espanhol, o italiano e o esperanto. Ganhou alguns prêmios também no gênero conto.

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