quarta-feira, 31 de agosto de 2011

HOMENAGEM: ANDORINHA SECRETA DE UM VERÃO - DANIEL FELIPE (CABO VERDE)



ANDORINHA SECRETA DE UM VERÃO




DANIEL FELIPE (CABO VERDE)


Andorinha secreta de um verão,
que só nós dois sabemos, te revelas.
De que longínqua e solitária estrela
vieste iluminar-me o coração?


De que planeta ainda inominado?
De que mistério astral, corpo solar,
Patagonia, celeste, ignoto mar,
provém o teu perfil sereno e amado?





DESNECESSÁRIA EXPLICAÇÃO



Que importa a melodia,
se acaso aos outros dou,
com pávida alegria,
o pouco que me sou?

Que importa ao que me sabe
estar só no meu caminho,
se dentro de mim cabe
a glória de ir sozinho?

Que importa a vã ternura
das horas magoadas,
se ao meu redor perdura
o eco das passadas?

Que importa a solidão
e o não saber onde ir,
se tudo, ao coração,
nos fala de partir?





TRESPASSE



Quem tiver sonhos, guarde-os bem fechados
— com naftalina — num baú inútil.
Por mim abdico desses vãos cuidados.
Deixai-me ser liricamente fútil!

Estou resolvido. Vou abrir falência.
(Bandeira rubra desfraldada ao vento:
"Hoje, leilão!") Liquida-se a existência
— por retirada para o esquecimento ...





A INVENÇÃO DO AMOR

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos
nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado
por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro
que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos
Decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja demasiado tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Fechem as escolas
Sobretudo protejam as crianças da contaminação
uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste
Inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão
Aplicado no entanto Respeitador da disciplina
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo
Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação
Mas é possível que haja outros. É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio
das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas

Procurem os guardas dos antigos universos concentracionários
precisamos da sua experiência onde quer que se escondam
ao temor do castigo

Que todos estejam a postos
Vigilância é a palavra de ordem
Atenção ao homem e à mulher de que se fala nos cartazes
À mais ligeira dúvida não hesitem denunciem
Telefonem à polícia ao comissariado ao Governo Civil
não precisam de dar o nome e a morada
e garante-se que nenhuma perseguição será movida
nos casos em que a denúncia venha a verificar-se falsa

Organizem em cada bairro em cada rua em cada prédio
comissões de vigilância. Está em jogo a cidade
o país a civilização do ocidente
esse homem e essa mulher têm de ser presos
mesmo que para isso tenhamos de recorrer às medidas mais drásticas

Por decisão governamental estão suspensas as liberdades individuais
a inviolabilidade do domicílio o habeas corpus o sigilo da correspondência
Em qualquer parte da cidade um homem e uma mulher amam-se ilegalmente
espreitam a rua pelo intervalo das persianas
beijam-se soluçam baixo e enfrentam a hostilidade nocturna
É preciso encontrá-los
É indispensável descobri-los
Escutem cuidadosamente a todas as portas antes de bater
É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz
Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância
Campos verdes floridos Água simples correndo A brisa das montanhas

Foi condenado à morte é evidente
É preciso evitar um mal maior
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo assim desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta

Impõe-se sistematizar as buscas Não vale a pena procurá-los
nos campos de futebol no silêncio das igrejas nas boîtes com orquestra privativa
Não estarão nunca aí
Procurem-nos nas ruas suburbanas onde nada acontece
A identificação é fácil
Onde estiverem estará também pousado sobre a porta
um pássaro desconhecido e admirável
ou florirá na soleira a mancha vegetal de uma flor luminosa
Será então aí
Engatilhem as armas invadam a casa disparem à queima roupa
Um tiro no coração de cada um
Vê-los-ão possivelmente dissolver-se no ar Mas estará completo o esconjuro
e podereis voltar alegremente para junto dos filhos da mulher

Mais ai de vós se sentirdes de súbito o desejo de deixar correr o pranto
Quer dizer que fostes contagiados Que estais também perdidos para nós
É preciso nesse caso ter coragem para desfechar na fronte
o tiro indispensável
Não há outra saída A cidade o exige
Se um homem de repente interromper as pesquisas
e perguntar quem é e o que faz ali de armas na mão
já sabeis o que tendes a fazer Matai-o Amigo irmão que seja
matai-o Mesmo que tenha comido à vossa mesa e crescido a vosso lado
matai-o Talvez que ao enquadrá-lo na mira da espingarda
os seus olhos vos fitem com sobre-humana náusea
e deslizem depois numa tristeza líquida
até ao fim da noite Evitai o apelo a prece derradeira
um só golpe mortal misericordioso basta
para impor o silêncio secreto e inviolável

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas salvo-condutos horas de recolher
censura prévia à Imprensa tribunais de excepção
Para bem da cidade do país da cultura
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua
No inquérito oficial atónito afirmou
que o homem e a mulher tinham estrelas na fronte
e caminhavam envoltos numa cortina de música
com gestos naturais alheios Crê-se
que a situação vai atingir o climax
e a polícia poderá cumprir o seu dever



Daniel Filipe
A Invenção do Amor e Outros Poemas
Lisboa, Presença, 1972




DANIEL FILIPE:

Em 1925 nasceu Daniel Damásio Ascensão Filipe na ilha da Boavista, em Cabo Verde.


Ainda criança, veio para Portugal onde fez os estudos liceais. Poeta, foi colaborador nas revistas Seara Nova e Távola Redonda, entre outras publicações literárias. Combateu a ditadura salazarista, sendo perseguido e torturado pela PIDE.


Num curto espaço de tempo, a sua poesia evoluiu desde a temática africana aos valores neo-realistas e a um intimismo original que versa o indivíduo e a cidade, o amor e a solidão.


Faleceu em 1964 em Cabo Verde.








Algumas obras:



Poesia


Missiva (1946)


Marinheiro sem Terra (1949)


Recado para a Amiga Distante (1956)


A Ilha e a Solidão (1957)


A Invenção do Amor (1961)


Pátria, Lugar de Exílio (1963)





Prosa
O Manuscrito na Garrafa (1960)




http://cvc.instituto-camoes.pt/poemasemana/25/danifilipe.html




http://www.astormentas.com/din/poema.asp?key=5554&titulo=Trespasse

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

ATENÇÃO!!!! AOS AMIGOS POETAS, PINTORES, EDUCADORES E DEMAIS ARTISTAS


Foto: IRP.GROUP



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ALCÂNTARA- SÃO GONÇALO - RJ
BRASIL
CEP: 24.710.007

domingo, 7 de agosto de 2011

HOMENAGEM: O FILHO DA SOLITÁRIA- NILTO MACIEL (BRASIL)*



Foto: Bandeira do Brasil



Foto: Nilto Maciel (Brasil)




O FILHO DA SOLITÁRIA



NILTO MACIEL (BRASIL)



Quando ele voltou, isto é, quando o trouxeram de volta, não o reconheci. Talvez eu já estivesse ficando cega, caduca, velha demais, como diziam. Não, meu filho parecia mesmo outro. Certamente haviam passado muitos anos desde sua partida, pois ele também não me reconheceu. E nem ainda me reconhece.
Com as quatro patas assentadas no chão frio, vive mudo pelos cantos. Eu o aconselho a cantar, de vez que não quer falar. E a correr, já que não deseja andar. Porém ele apenas coaxa e pula, de quando em quando. Como se tivesse medo de estar livre.
Resolvo então espantá-lo com a vassoura. Se assim não fizer, a casa pode virar um monturo, cheia de sapos, ratos, bichos de toda espécie. Paro e vejo: ele me olha com resignada profundidade. Depois dá um pulo, outro, mais outro e foge para o quintal. Se me descuido ou quando é noite, está ele novamente no mesmo cantinho, encolhido, os olhos esbugalhados.
No quintal, mete-se na água suja que escorre da lavanderia, na lama formada ao pé do mamoeiro ou no lixo onde se amontoam os restos de comida reservados ao bacorim desaparecido.
Dia desses, a vizinha da direita, ao ouvir aquele remexido na água, pôs a cabeça sobre o muro e perguntou se me haviam devolvido o porco. Enquanto imaginava a resposta, perguntei-lhe se do lado de lá o muro era baixo. Fui buscar um tamborete, porque julguei ter ouvido roncos de porco, explicou-me. A seguir, arregalou os olhos e perguntou: de quem é este sapão? Você está criando ele para engolir cobras? João olhou para a cabeça que falava e deu uns três pulinhos dentro da água. Tive vontade de dizer um desaforo qualquer. Terminei fazendo graça. Eu o queria para apagar brasas. A safada sorriu e disse: deixe de mentira! Ninguém usa mais fogão a lenha nem fogareiro a carvão. E desapareceu. Fiquei apalermada, a olhar para cima do muro. E ainda ouvi a voz risonha e sumida da vizinha gritar: jogue água salgada nas costas dele.
Dias depois, minha vizinha da esquerda veio me perguntar se, na verdade, eu havia resolvido criar batráquios. Ora, que diabo são batráquios? Quando tiver alguma jia grande me avise. Adoro jias.
Hoje me contaram tudo: meu filho esteve numa solitária, acocorado durante não sei quanto tempo.


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NILTO MACIEL: (Baturité, 1945) é um dos fundadores de O Saco. Publicou as seguintes coleções: Itinerário, 1.ª ed. 1974, 2.ª ed. 1990, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Tempos de Mula Preta, 1.ª ed. 1981, Secretaria da Cultura do Ceará; 2.ª ed. 2000, Papel Virtual Editora, Rio de Janeiro, RJ; Punhalzinho Cravado de Ódio, 1986, Secretaria da Cultura do Ceará.; As Insolentes Patas do Cão, 1991, João Scortecci Editora, São Paulo, SP; Babel, 1997, Editora Códice, Brasília; e Pescoço de Girafa na Poeira, 1999, Secretaria de Cultura do Distrito Federal/Bárbara Bela Editora Gráfica, Brasília. Tem novelas, romances e poemas em livros. Pertenceu ao Grupo Siriará. Editor, desde 1991, em Brasília, da revista Literatura. Em 2003 a transferiu para Fortaleza. Suas narrativas mereceram artigos e ensaios de alguns comentaristas e críticos cearenses, como F. S. Nascimento, Sânzio de Azevedo, Dimas Macedo, Batista de Lima, Francisco Carvalho, Caio Porfírio Carneiro, Carlos Augusto Viana, e também de outros Estados, como Foed Castro Chamma, Tanussi Cardoso, Francisco Miguel de Moura, Ronaldo Cagiano e Astrid Cabral. Tem contos traduzidos para o espanhol, o italiano e o esperanto. Ganhou alguns prêmios também no gênero conto.